sexta-feira, 16 de outubro de 2009

Oficina Chico Buarque






Música pr’aprender brasileira

Introdução

A música popular tem um espaço especial da vida de todos os brasileiros, seja qual for sua idade, classe social ou região de moradia. Assume formas diversas, bebendo em fontes tradicionais (como o samba, o choro, o baião, o forró, o xote, a marcha), incorporando novas tendências (música estrangeira, eletrônica, sampler) ou criando fórmulas mercadológicas para fazer sucesso e vender muitos discos.

Personagem de nossa cultura e de nossa história, a música brasileira não tem por que ficar fora da sala de aula. Além de ser um item indispensável na formação integral do cidadão brasileiro, ela pode funcionar como um fantástico instrumento de comunicação para a apreensão de conteúdos tradicionais.

As atividades sugeridas foram pensadas para alunos do ensino fundamental, a partir da 7ª série, e do ensino médio. Mas as ideias podem e devem ser adaptadas de acordo com a idade dos alunos, seu estágio de desenvolvimento e compreensão.

A linguagem musical atinge a percepção humana de uma forma diferente. Não é à toa que os alunos, e até alguns professores, recorrem a musiquinhas para facilitar a tarefa de "decorar" conteúdos. A apreensão de uma mensagem acompanhada de melodia se dá de outra forma, mais profunda do que a compreensão intelectual. A música, linguagem não-verbal, atinge o terreno das emoções, da intuição, das nossas capacidades não-racionais.

Professores de educação artística estão cansados de saber disso e utilizar a música para trabalhar diversos aspectos da expressão, desenvolvimento motor, concentração, disciplina e outras habilidades importantes para os alunos. Nossa intenção, aqui, não é enveredar pela complexa discussão da linguagem musical e suas aplicações. O objetivo é bem mais simples: valer-se da música como ponte para trabalhar conteúdos diversos.

Vamos nos centrar em temas transversais ao ensino de Língua Portuguesa, Literatura e História. Veremos que a música abre infinitas janelas para a construção do conhecimento.

Lorenzo Aldé, jornalista

Desconstruindo Construção

Apresentação

Para começar, é indispensável, trabalhando esta ou qualquer outra música em sala de aula, ouvi-la junto com os alunos. Seduzidos pela beleza da canção, envolvidos por sua atmosfera, os alunos já começam prestando atenção e gostando da atividade. Durante a aula, estarão sempre com a música na cabeça e trabalharão a letra pensando nela.

As letras de música são criadas especialmente para aquele fim. Podem ser lindas como um poema, mas dependem da melodia e do ritmo para viver integralmente.

Depois de ouvir a música, vamos conhecer a letra de Construção, de Chico Buarque, e pensar nas possibilidades educativas que ela traz.


Construção

(Chico Buarque, 1971)

Amou daquela vez como se fosse a última

Beijou sua mulher como se fosse a última

E cada filho seu como se fosse o único

E atravessou a rua com seu passo tímido

Subiu a construção como se fosse máquina

Ergueu no patamar quatro paredes sólidas

Tijolo com tijolo num desenho mágico

Seus olhos embotados de cimento e lágrima

Sentou pra descansar como se fosse sábado

Comeu feijão com arroz como se fosse um príncipe

Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago

Dançou e gargalhou como se ouvisse música

E tropeçou no céu como se fosse um bêbado

E flutuou no ar como se fosse um pássaro

E se acabou no chão feito um pacote flácido

Agonizou no meio do passeio público

Morreu na contramão atrapalhando o tráfegoBr />

Amou daquela vez como se fosse o último

Beijou sua mulher como se fosse a única

E cada filho como se fosse o pródigo

E atravessou a rua com seu passo bêbado

Subiu a construção como se fosse sólido

Ergueu no patamar quatro paredes mágicas

Tijolo com tijolo num desenho lógico

Seus olhos embotados de cimento e tráfego

Sentou pra descansar como se fosse um príncipe

Comeu feijão com arroz como se fosse o máximo

Bebeu e soluçou como se fosse máquina

Dançou e gargalhou como se fosse o próximo

E tropeçou no céu como se ouvisse música

E flutuou no ar como se fosse sábado

E se acabou no chão feito um pacote tímido

Agonizou no meio do passeio náufrago

Morreu na contramão atrapalhando o público

Amou daquela vez como se fosse máquina

Beijou sua mulher como se fosse lógico

Ergueu no patamar quatro paredes flácidas

Sentou pra descansar como se fosse um pássaro

E flutuou no ar como se fosse um príncipe

E se acabou no chão feito um pacote bêbado

Morreu na contramão atrapalhando o sábado


Primeira Leitura

A primeira coisa que precisamos saber é se a turma entendeu a letra. É certo que algumas palavras podem ser desconhecidas da maioria (embotado, pródigo, flácido), mas são poucas, e nada que comprometa a compreensão do todo. Pois bem: o que eles compreenderam?

Depois de ouvirem a música com a letra em mãos, pode ser uma boa hora para abrir uma pequena discussão:

- Que história a música conta?

- Que sentimentos ela desperta?

- O que lembra o formato do poema?

- Por que as coisas aconteceram daquela maneira?

Provavelmente esta última pergunta será a mais polêmica, e pode levar a uma discussão entre alunos com interpretações divergentes, ou mesmo causar uma grande interrogação geral na turma. Se eles dizem que "ninguém entendeu nada" (o que obviamente não é verdade), pode ser que acabem perguntando a você, professor: "Explica pra gente por que ele caiu do prédio!", "Ele se matou?", "Ele caiu porque estava bêbado?", etc. Todo o cuidado é pouco para não cair nessa armadilha. Se respondermos a todas as perguntas com a nossa opinião, reduzimos o texto a apenas uma interpretação "correta", e acabou-se a discussão.

Quem tem que interpretar o texto são os alunos, quem tem que contrapor outras opiniões são outros alunos. O papel do educador é apenas orientar a discussão, evitar excessos, fazer perguntas provocadoras, instigar a curiosidade e incentivar a imaginação da turma.

Outra possibilidade é pedir que produzam textos, individuais ou em duplas, interpretando a letra. Isto permite avaliar a capacidade de compreensão dos alunos, e a capacidade de expressar sua opinião e seus sentimentos. Isto é importante: não pedir que comentem apenas a história objetiva da letra, mas também que deem ênfase aos sentimentos que a música (letra + melodia + ritmo) despertou. "Como se sentiu ouvindo esta música?" é uma boa pergunta, aberta e sugestiva. As respostas podem ajudar a revelar as intenções ao autor e as mensagens que a música traz, para além da letra.

Seja como for, a primeira interpretação da letra não deve ser uma atividade muito extensa, para não traumatizar os alunos. Sabemos que nem sempre é fácil, para eles, interpretar um texto tão denso, tão poético, com tantos elementos.

Portanto, feita a primeira leitura e o debate (ou produção de textos), vamos em frente.

Desconstrução

Não é difícil perceber que Chico criou esta letra na forma de um poema concreto. Este tipo de linguagem poética se caracteriza pela atenção à forma, e não apenas ao conteúdo. O concretismo vale-se muito da chamada metalinguagem, ou seja, de referências ao próprio corpo do poema. Como se o poema fosse uma matéria concreta, seus elementos visuais e gráficos são tão ou mais importantes do que o significado das palavras. Deve-se considerar a sonoridade, a posição e a relação entre as palavras.

Se sua turma estiver estudando Poesia Concreta, esta letra representa um belo material para estudo. Mas não é preciso discutir o Concretismo para trabalhar a questão formal de Construção. O próprio exercício de interpretar o texto acaba nos levando, inevitavelmente, a descobrir suas características formais.

O título é a primeira pista. Ele não se refere apenas ao personagem central, que trabalha como operário numa obra. Na verdade, todo o texto é também uma construção, feita de tijolos e cimento, "num desenho lógico". Os tijolos são as palavras, que formam paredes de texto. As três estrofes são blocos que compõem um edifício literário.

É claro que isto também é uma interpretação (entre as infinitas possíveis), e é claro que ela não precisa ser "ensinada" aos alunos. Tudo deve ser descoberto por eles, numa investigação individual ou em grupo. A proposta é: desconstruir a Construção, trabalhando os pedaços do texto (versos, frases, palavras, estrofes) como se fossem objetos.

As estrofes

As estrofes são os grandes blocos do texto e da construção. Como blocos, podem ser manejadas de forma independente: lendo apenas uma estrofe, dá para entender toda a história. As estrofes também podem ser mudadas de lugar, e a mensagem permanece a mesma.

Por que, então, o autor optou por usar três blocos de texto, e não apenas um? Qual é a função das três estrofes?

Chama a atenção a repetição, nas três estrofes, do início dos versos:

Amou daquela vez...

Beijou sua mulher...

E cada filho seu...

E atravessou a rua...

Subiu a construção...

Etc...

Nas duas primeiras estrofes repete-se o início de todos os versos, na última estrofe repete-se apenas o início de alguns versos.

Por que Chico não usou o mesmo número de versos na terceira estrofe?

Talvez o andamento e a intensidade da música ajudem a responder a esta questão. Não podemos esquecer que a música também dá sentido à mensagem da obra. A forma como ela vai se tornando cada vez mais intensa, cada vez mais rápida e vertiginosa, é perfeitamente coerente com a história que conta: o crescendo da emoção que culmina com a queda livre.

A última estrofe seria equivalente ao final da história. Tão rápida e intensa quanto uma queda, ela não comporta sequer todos os versos. Dá para imaginar o personagem caindo do alto da primeira linha do poema e chegando ao chão na última palavra da última estrofe. A poesia concreta permite um diálogo assim visual com o texto (é a metalinguagem).

A última estrofe também pode ser interpretada como a base do edifício. Daí o seu formato diferente.

As palavras

O poema de Chico é uma verdadeira aula de Português. O que têm em comum as palavras que encerram todos os versos: bêbado, tímido, sólido, mágico, sábado, náufrago?

Sim, são todas proparoxítonas. O interessante é que o autor não precisa usar rimas para combinar os versos, pois o efeito sonoro das proparoxítonas, colocadas sempre na mesma posição dentro da melodia, funciona como se fosse uma rima.

Observando a segunda estrofe em relação à primeira, nota-se que a ordem dos versos permanece rigorosamente igual. O que muda são as palavras finais. As proparoxítonas, que funcionam gramaticalmente como adjetivos, se deslocam de um verso para outro, como tijolos que foram mudados de lugar. O resultado é que os versos mudam de sentido quando os adjetivos finais são outros. Por exemplo:

Bebeu e soluçou como se fosse um náufrago (1ª estrofe)

Bebeu e soluçou como se fosse máquina (2ª estrofe)

O sentido da frase mudou completamente. Assim, apesar de conterem os mesmos elementos, a primeira e a segunda estrofe trazem mensagens diferentes. Porém, voltando à interpretação da letra como um todo, chega-se à conclusão de que não adianta mudar os tijolos de lugar. As impressões do personagem, sua relação com a realidade, continuam duras e opressivas, e o resultado final é igualmente trágico.

A disposição das palavras-tijolo também guarda alguns segredos para o observador mais atento. Nem todas as proparoxítonas finais da primeira estrofe se repetem na segunda, e vice-versa:

Que palavras estão na primeira estrofe e não estão na segunda?

Que palavras estão na segunda estrofe e não estão na primeira?

Qual é a única palavra que se repete no final de dois versos da mesma estrofe?

Que palavras aparecem na primeira estrofe, somem na segunda e reaparecem na terceira?

Que palavra aparece apenas na segunda e na terceira estrofes?

Que interpretação é possível dar para essas palavras "desgarradas" do poema?

Infinitas possibilidades se abrem para o trabalho com os alunos, de modo a fazê-los realizar a análise do texto de forma divertida e criativa.

Pode-se propor, por exemplo, que eles retirem, de todos os versos do poema, as últimas palavras. E reescrevam o texto usando outras proparoxítonas, que assumam a função de adjetivos nas frases.

Os versos

Os versos são todos construídos sobre um mesmo padrão rítmico, do início ao fim do poema. A melodia sofre pequenas variações, mas também é feita em cima de repetições. Como os tijolos de um edifício precisam estar sempre em mesmo número e sempre alinhados para que as paredes fiquem retas e firmes, também os elementos desta Construção são feitos de repetição e simetria.

A principal prova dessa simetria é a métrica do poema. Um bom desafio para os alunos é propor que contem o número de sílabas poéticas em cada verso. Será mais divertido se pedirmos para que cada aluno escolha um verso e conte em voz baixa.

Quando todos acabarem de contar, pedimos para que a turma fale em voz alta o resultado obtido: todos (ou quase, descontadas as falhas matemáticas ou de leitura) dirão: 14!

E

ca

da

fi

lho

seu

co

mo

se

fo

sse o

ú

ni

co

1

2

3

4

5

6

7

8

9

10

11

12

13

14

Para os que não chegaram a este resultado, devemos explicar que a versificação dos poemas obedece ao ritmo imposto pela métrica, sendo a divisão silábica, portanto, um pouco diferente. Versos aparentemente maiores do que outros contêm as mesmas 14 unidades silábicas quando são falados ou cantados. É o caso de:

co

meu

fei

jão

com a

rroz

co

mo

se

fos

se um

prín

ci

pe

1

2

3

4

5

6

7

8

9

10

11

12

13

14

Se ainda assim eles ficarem muito cismados, duvidando de você e do Chico Buarque, o jeito é tirar a prova: recitem (ou cantem) a letra em voz alta, contando nos dedos cada sílaba, do início ao fim dos versos.

Deus lhe pague

Se hoje podemos olhar com bastante neutralidade para uma letra de Chico Buarque, preocupados apenas com os significados internos da canção e com a forma do poema, nem sempre foi assim. Chico já era um nome nacionalmente respeitado da MPB nos anos 70, quando foi composta Construção. Suas músicas daquele período dialogavam diretamente com a situação política vivida pelo país: no ano de 1971, a ditadura militar estava no auge de seu período repressor. O presidente era o General Emílio Garrastazu Médici, e durante sua gestão (1969-1974) o país viveu os momentos mais violentos de restrição das liberdades individuais, perseguição e tortura de opositores e dissolução de instituições democráticas.

O caráter histórico de composições como Construção deve ser considerado para uma análise integral das obras. Da mesma forma, a disciplina de História do Brasil, ao estudar esse ou qualquer outro período, pode e deve valer-se das manifestações culturais da época.

Algumas das melhores composições de Chico Buarque nas décadas de 60 e 70 trazem mensagens claras (ainda que indiretas, para escapar da censura) de crítica à ditadura. É o caso de Meu caro amigo (1976), Apesar de você (1970), Acorda amor (que assinou com o pseudônimo Julinho de Adelaide, 1974), Roda viva (1967) e Deus lhe pague (1971), entre muitas outras.

Não é à toa que a gravação original de Construção traz, ao final da música, um trecho de Deus lhe pague. Vamos ler a letra desta canção e tentar compreender o que ela tem a ver com Construção:


Deus lhe pague

(Chico Buarque, 1971)

Por esse pão pra comer, por esse chão pra dormir

A certidão pra nascer, e a concessão pra sorrir

Por me deixar respirar, por me deixar existir

Deus lhe pague

Pelo prazer de chorar e pelo "estamos aí"

Pela piada no bar e o futebol pra aplaudir

Um crime pra comentar e um samba pra distrair

Deus lhe pague

Por essa praia, essa saia, pelas mulheres daqui

O amor malfeito depressa, fazer a barba e partir

Pelo domingo que é lindo, novela, missa e gibi

Deus lhe pague

Pela cachaça de graça que a gente tem que engolir

Pela fumaça, desgraça, que a gente tem que tossir

Pelos andaimes, pingentes, que a gente tem que cair

Deus lhe pague

Por mais um dia, agonia, pra suportar e assistir

Pelo rangido dos dentes, pela cidade a zunir

E pelo grito demente que nos ajuda a fugir

Deus lhe pague

Pela mulher carpideira pra nos louvar e cuspir

E pelas moscas-bicheiras a nos beijar e cobrir

E pela paz derradeira que enfim vai nos redimir

Deus lhe pague


E então? O que os alunos acharam desta letra? Somente a análise do conteúdo de Deus lhe pague já renderia várias aulas, não é? É o retrato da vida de um homem comum brasileiro daquela época.

O narrador está falando com alguém. Para quem ele está dizendo "deus lhe pague"?

Que trechos parecem se referir à repressão da ditadura?

Qual é a relação explícita entre as duas letras?

Quais são as relações implícitas?

O que parece claro é a intenção de mostrar que a tragédia individual do personagem de Construção não está separada da situação social e política do país.

Deus lhe pague poderia ser considerada um pano de fundo coletivo que explica, em parte, a tragédia individual de Construção? Ou não?

Na Internet é fácil encontrar uma série de sites sobre a ditadura militar, a sociedade brasileira daquela época, a MPB e suas diversas correntes (bossa nova, tropicalismo, música de protesto. Convide os alunos para fazer um trabalho multidisciplinar sobre esses temas!

De quebra, eles estarão conhecendo e aprendendo a gostar de um dos períodos mais férteis de nossa música.

Fonte: http://www.educacaopublica.rj.gov.br/oficinas/lportuguesa/index.html

3 comentários:

  1. me reponda essa pergunta
    que interpretaçao e possivel dar para as palavras desgarradas?

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  2. Gostaria dos gabaritos. Há essa possibilidade?

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  3. Poderia me ajudar com a escansão silábica do trecho dessa música de Chico Buarque? Desde já, agradeço.
    Meu pai era paulista
    Meu avô pernambucano
    O meu bisavô, mineiro
    Meu tataravô, baiano
    Meu maestro soberano
    Foi Antônio Brasileiro

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