terça-feira, 2 de março de 2010

Defenestração




Gosto de trabalhar esta crônica para fazer reflexões sobre a linguagem e o vocabulário, refletir sobre as mudanças no Português com o passar do tempo, palavras que caem em desuso e o fato de nem sempre conhecermos todas as palavras do nosso idioma, já que nossa língua portuguesa é muito rica, né?!
Sem contar que textos do Luís Fernando Veríssimo são sempre engraçados e costumam agradar, gerando muitos comentários.

Boa leitura!



Certas palavras têm o significado errado. Falácia, por exemplo, devia ser o nome de alguma coisa vagamente vegetal. As pessoas deveriam criar falácias em todas as suas variedades. A Falácia Amazônica. A
misteriosa Falácia Negra.
-Hermeuta deveria ser o membro de uma seita de andarilhos herméticos. Onde eles chegassem, tudo se complicaria.
-Os hermeutas estão chegando!
-Ih, agora é que ninguém vai entender mais nada...
Os hermeutas ocupariam a cidade e paralisariam todas as atividades produtivas com seu enigmas e frases ambíguas. Ao se retirarem deixariam a população prostrada pela confusão. Levaria semanas até que as coisas
recuperassem o seu sentido óbvio. Antes disso, tudo pareceria ter um sentido oculto.
-Alô...
-O que é que você quer dizer com isso?
Traquinagem devia ser o barulho que um corpo faz ao cair na água.
Mas nenhuma palavra me fascinava tanto quanto defenestração. A princípio foi o fascínio da ignorância. Eu não sabia o seu significado, nunca me lembrava de procurar no dicionário e imaginava coisas. Tinha até um certo tom lúbrico. Galanteadores de calçada deviam sussurrar no ouvido das mulheres:
-Defenestras?
A resposta seria um tapa na cara. Mas algumas... Ah, algumas defenestravam.



Também podia ser algo contra pragas e insetos. As pessoas talvez mandassem defenestrar a casa. Haveria, assim, defenestradores profissionais.
Ou quem sabe seria uma daquelas misteriosas palavras que encerravam os documentos formais? "Nestes termos, pede defenestração..." Era uma palavra cheia de implicações. Devo até tê-la usado uma ou outra vez, como em:
-Aquele é um defenestrado.
Dando a entender que era uma pessoa, assim, como dizer? Defenestrada. Mesmo errada, era a palavra exata.
Um dia, finalmente procurei no dicionário. E aí está o Aurelião que não me deixa mentir. "Defenestração" vem do francês "defenestration". Substantivo feminino. Ato de atirar alguém ou algo pela janela.
Ato de atirar alguém ou algo pela janela!
Acabou a minha ignorância mas não a minha fascinação. Um ato como este só tem nome próprio e lugar nos dicionários por alguma razão muito forte. Afinal, não existe, que eu saiba, nenhuma palavra para o ato de atirar alguém ou algo pela porta, ou escada abaixo. Por que, então, defenestração?
Talvez fosse um hábito francês que caiu em desuso. Como o rapé. Um vício como o tabagismo ou as drogas, suprimindo o tempo.
-Les defenestrations. Devem ser proibidas.
-Sim, monsieur le Ministre.
-São um escândalo nacional. Ainda mais agora, com os novos prédios.
-Sim, monsieur le Ministre.
-Com os prédios de três, quatro andares, ainda era admissível. Até divertido. mas daí para cima vira crime. Todas as janelas do quarto andar para cima devem ter um cartaz: "Interdit de defenestrer". Os transgressores serão mutados. Os reincidentes serão presos.
Na bastilha, o Marquês de Sade deve ter convivido com notórios defenestreus. E a compulsão, mesmo suprimida, talvez ainda persista no homem, como persiste na sua linguagem. O mundo pode estar cheio de defenestradores latentes.
-É esta estranha vontade de atirar alguém ou algo pela janela, doutor...
-Hmm. O impulsus defenestrex de que nos fala Freud. Algo a ver com a mãe. Nada com o que se preocupar - diz o analista, afastando-se da janela.
Quem entre nós nunca sentiu a compulsão de atirar alguém ou algo pela janela? A basculante foi inventada para desencorajar a defenestração. Toda a arquitetura moderna, com suas paredes externas de vidro reforçado e sem aberturas, pode ser uma reação inconsciente e esta volúpia humana, nunca totalmente dominada.
Na lua-de-mel, numa suíte matrimonial do 17º andar.
-Querida...
-Mmmm?
-Há uma coisa que eu preciso lhe dizer...
-Fala, amor.
-Sou um defenestrador.
E a noiva, na sua inocência, caminha para a cama:
-Estou pronta para experimentar tudo com você. Tudo!
Uma multidão cerca o homem que acaba de cair na calçada. Entre gemidos, ele aponta para cima e balbucia:
-Fui defenestrado...
Alguém comenta:
-Coitado. E depois ainda atiraram ele pela janela!
Agora mesmo me deu uma estranha compulsão de arrancar o papel da máquina e defenestrar esta crônica. Se ela sair é porque resisti.


Luís Fernando Veríssimo

Nenhum comentário:

Postar um comentário