quarta-feira, 17 de março de 2010

Diferença entre Crônica e Conto

Crônica X Conto
Semana passada, duas alunas (de escolas diferentes, diga-se de passagem!) questionaram-me sobre a diferença entre crônica e conto. 
Na sala de aula, fiz a explicação da diferença básica, mas acabei pesquisando um pouco  sobre o assunto. E o resultado estou compartilhando aqui com vocês.
Espero que aproveitem!



crô.ni.ca
s. f. 1. Narração histórica, por ordem cronológica. 2. Seção ou coluna, de jornal ou revista, consagradas a assuntos especiais.

con.to.1
s. m. 1. Narração falada ou escrita. 2. História ou historieta imaginadas. 3. Fábula. 4. Mentira inventada para iludir indivíduos rústicos; engodo, embuste. — C.-do-vigário: embuste para apanhar dinheiro das pessoas de boa-fé.

O Conto é a forma narrativa, em prosa, de menor extensão (no sentido estrito de tamanho), ainda que contenha os mesmos componentes do romance. Entre suas principais características, estão a concisão, a precisão, a densidade, a unidade de efeito ou impressão total – da qual falava Poe (1809-1849) e Tchekhov (1860-1904): o conto precisa causar um efeito singular no leitor; muita excitação e emotividade.


Crônica, é o único gênero literário produzido essencialmente para ser veiculado na imprensa, seja nas páginas de uma revista, seja nas páginas de um jornal. Quer dizer, ela é feita com uma finalidade utilitária e pré-determinada: agradar aos leitores dentro de um espaço sempre igual e com a mesma localização, criando-se assim, no transcurso dos dias ou das semanas, uma familiaridade entre o escritor e aqueles que o lêem. A crônica é, primordialmente, um texto escrito para ser publicado no jornal. Assim o fato de ser publicada no jornal já lhe determina vida curta, pois à crônica de hoje seguem-se muitas outras nas próximas edições.



Basicamente, o que diferencia o conto da crônica é a densidade poética.
O conto é pesado, a crônica é leve. O conto deve provocar e inquietar, a crônica deve entreter e deleitar. A crônica é a prosa curta, amena e coloquial, com toques de malícia e humor, sobre os fatos políticos da atualidade ou sobre os hábitos e costumes dos diversos segmentos sociais. O conto é todo o resto, é toda a prosa curta que não é crônica.

No conto a história é completa e fechada como um ovo. É uma célula dramática, um só conflito, uma só ação. A narrativa passiva de ampliar-se não é conto.
Poucas são as personagens em decorrência das unidades de ação, tempo e lugar. Ainda em conseqüência das unidades que governam a estrutura do conto, as personagens tendem a ser estáticas, porque as surpreende no instante climático de sua existência. O contista as imobiliza no tempo, no espaço e na personalidade (apenas uma faceta de seu caráter).

A crônica é um gênero híbrido que oscila entre a literatura e o jornalismo, resultado da visão pessoal, particular, subjetiva do cronista ante um fato qualquer, colhido no noticiário do jornal ou no cotidiano. É uma produção curta, apressada (geralmente o cronista escreve para o jornal alguns dias da semana, ou tem uma coluna diária), redigida numa linguagem descompromissada, coloquial, muito próxima do leitor. Quase sempre explora a humor; mas às vezes diz coisas sérias por meio de uma aparente conversa – fiada. Noutras, despretensiosamente faz poesia da coisa mais banal e insignificante.

E, finalmente, a crônica é o relato de um flash, de um breve momento do cotidiano de uma ou mais personagens. O que diferencia a crônica do conto é o tempo, a apresentação da personagem e o desfecho.

No conto, as ações transcorrem num tempo maior: dias, meses, até anos, o que não se dá na crônica, que procura captar um lance curioso, um momento interessante, triste ou alegre. No conto, a personagem é analisada e/ou caracterizada, há maior densidade dramática e freqüentemente um conflito, resolvido em desfecho. Na crônica, geralmente não há desfecho, esse fica para o leitor imaginar e, depois, tirar suas conclusões. Uma das finalidades da crônica é justamente apresentar o fato, nu, seco e rápido, mas não concluí-lo. A possível tese fica a meio caminho, sugerida, insinuada, para que o leitor reflita e chegue a ela por seus próprios meios.

terça-feira, 2 de março de 2010

Amor, de Clarice Lispector




Clarice é uma das escritoras que mais gosto e este é um dos contos que eu sempre trabalho em classe. Atualmente seus textos estão dominando o mundo virtual e é comum encontrarmos citações de Clarice em orkut, twitter e etc. Acredito que esse fenômeno deve ser aproveitado em sala de aula.


Boa Leitura!


Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação.

Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava-lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranqüilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida.

Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. No entanto sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem.

No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha — com persistência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e o escolhera.

Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto — ela o abafava com a mesma habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido. Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranqüila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera.

O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento mais úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instável. Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher.

O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto.

A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego.

O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranqüila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles... Um homem cego mascava chicles.

Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar — o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mascava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir — como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada — o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô despencou-se do colo, ruiu no chão — Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava — o bonde estacou, os passageiros olharam assustados.

Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava pálida. Uma expressão de rosto, há muito não usada, ressurgia-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível. O moleque dos jornais ria entregando-lhe o volume. Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede. O cego interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos foi jogado fora da rede e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o bonde deu a nova arrancada de partida.

Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito.

A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o que fazer com as compras no colo. E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito. Por quê? Teria esquecido de que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível... O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão — e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram.

O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução, as grades dos esgotos estavam secas, o ar empoeirado. Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão. Em cada pessoa forte havia a ausência de piedade pelo cego e as pessoas assustavam-na com o vigor que possuíam. Junto dela havia uma senhora de azul, com um rosto. Desviou o olhar, depressa. Na calçada, uma mulher deu um empurrão no filho! Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo... E o cego? Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa.

Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite - tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca.



Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida. Na fraqueza em que estava, tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com pernas débeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite.

Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia de medo, ela procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso rodeava-lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pôde localizar-se. Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os portões do Jardim Botânico.

Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não havia ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no banco de um atalho e ali ficou muito tempo.

A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia dentro de si.

De longe via a aléia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra dos ramos cobria o atalho.

Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais apressados da tarde. De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada? Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais, grande demais.

Um movimento leve e íntimo a sobressaltou — voltou-se rápida. Nada parecia se ter movido. Mas na aléia central estava imóvel um poderoso gato. Seus pêlos eram macios. Em novo andar silencioso, desapareceu.

Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no chão. Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber.

Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranqüila. O assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos.

Ao mesmo tempo que imaginário — era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega — era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante.

As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era profunda, perfumada... Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado... O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno.

Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na sombra. Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela sentia nojo.




Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho obscuro, atingiu a alameda. Quase corria — e via o Jardim em torno de si, com sua impersonalidade soberba. Sacudiu os portões fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia apareceu espantado de não a ter visto.

Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre. Correu com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito — o que sucedia? A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo lhe parecia seu, sujo, perecível, seu. Abriu a porta de casa. A sala era grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava — que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver. O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu, que corria e a abraçava. Apertou-o com força, com espanto. Protegia-se tremula. Porque a vida era periclitante. Ela amava o mundo, amava o que fora criado — amava com nojo. Do mesmo modo como sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a. Abraçou o filho, quase a ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal — o cego ou o belo Jardim Botânico? — agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo. Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha... Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava deles... Tenho medo, disse. Sentia as costelas delicadas da criança entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe, chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-se. Não deixe mamãe te esquecer, disse-lhe. A criança mal sentiu o abraço se afrouxar, escapou e correu até a porta do quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que jamais recebera. Q sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o.

Deixou-se cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede. De que tinha vergonha?

Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver.

Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas. O homem pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o lados que lhe haviam ferido os olhos. O Jardim Botânico, tranqüilo e alto, lhe revelava. Com horror descobria que pertencia à parte forte do mundo — e que nome se deveria dar a sua misericórdia violenta? Seria obrigada a beijar um leproso, pois nunca seria apenas sua irmã. Um cego me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada. Sentia-se banida porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes. Ah! era mais fácil ser um santo que uma pessoa! Por Deus, pois não fora verdadeira a piedade que sondara no seu coração as águas mais profundas? Mas era uma piedade de leão.

Humilhada, sabia que o cego preferiria um amor mais pobre. E, estremecendo, também sabia por quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a como um lobisomem é chamado pelo luar. Oh! mas ela amava o cego! pensou com os olhos molhados. No entanto não era com este sentimento que se iria a uma igreja. Estou com medo, disse sozinha na sala. Levantou-se e foi para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar.

Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e constante. O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogão, onde descobriu a pequena aranha. Carregando a jarra para mudar a água - havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas mãos. O mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto da lata de lixo, esmagou com o pé a formiga. O pequeno assassinato da formiga. O mínimo corpo tremia. As gotas d'água caíam na água parada do tanque. Os besouros de verão. O horror dos besouros inexpressivos. Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror. Andava de um lado para outro na cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Em torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos.

Depois o marido veio, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os filhos dos irmãos.

Jantaram com as janelas todas abertas, no nono andar. Um avião estremecia, ameaçando no calor do céu. Apesar de ter usado poucos ovos, o jantar estava bom. Também suas crianças ficaram acordadas, brincando no tapete com as outras. Era verão, seria inútil obrigá-las a dormir. Ana estava um pouco pálida e ria suavemente com os outros. Depois do jantar, enfim, a primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas. Eles rodeavam a mesa, a família. Cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos. Riam-se de tudo, com o coração bom e humano. As crianças cresciam admiravelmente em torno deles. E como a uma borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu.

Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas, ela era uma mulher bruta que olhava pela janela. A cidade estava adormecida e quente. O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até envelhecer de novo? Qualquer movimento seu e pisaria numa das crianças. Mas com uma maldade de amante, parecia aceitar que da flor saísse o mosquito, que as vitórias-régias boiassem no escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico.

Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa! pensou correndo para a cozinha e deparando com o seu marido diante do café derramado.

— O que foi?! Gritou vibrando toda.

Ele se assustou com o medo da mulher. E de repente riu entendendo:

— Não foi nada, disse, sou um desajeitado. Ele parecia cansado, com olheiras.

Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção. Depois atraiu-a a si, em rápido afago.

— Não quero que lhe aconteça nada, nunca! Disse ela.

— Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro, respondeu ele sorrindo.

Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde alguma coisa tranqüila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver. Acabara-se a vertigem de bondade.

E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia.



1. No começo do conto, o narrador traça um perfil da personagem Ana. Quem era ela? Como era sua vida?


2. Em que momento do dia Ana corria o risco de uma crise existencial?


3. Que fato ocorrido durante a viagem de bonde provoca uma crise em Ana, alterando-a profundamente?


4. A rotina do dia-a-dia, tão bem administrada por Ana, era como uma rede de proteção contra o inesperado da vida. Que objeto usado por Ana simboliza essa proteção aparente que ela teceu para si mesma? E o que podem representar os ovos quebrados no bonde?

Literatura e realidade

Leia o texto seguinte, escrito pelo poeta moçambicano Reinaldo Ferreira ( 1922-1959).

Receita para fazer um herói

“ Tome-se um homem feito de nada
Como nós em tamanho natural
Embeba-se lhe a carne
Lentamente
De uma certeza aguda, irracional
Intensa como o ódio, ou como a fome.
Depois perto do fim
Agite-se um pendão
E toque-se o clarim.
Serve-se morto.”
Apud LAJOLO, Marisa.O que é literatura.São Paulo: Brasiliense.


1- Que elementos do texto fazem lembrar um “receita”, como diz o texto?
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2- Segundo o eu lírico, qual é o “ingrediente” que pode transformar um ser humano em herói? Por quê?
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3- Você concorda com essa idéia? Acha que é assim mesmo que fazem ”heróis”?
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Mulher assassinada

Policiais que faziam a ronda no centro da cidade encontraram, na madrugada de ontem, perto da Praça da Sé, o corpo de uma mulher aparentando 30 anos de idade. Segundo depoimentos de pessoas que trabalhavam nos bares próximos, trata-se de uma prostituta conhecida por Nenê. Ela foi assassinada a golpes de facas. A policia descarta a hipótese de assalto, pois sua bolsa, com a carteira de dinheiro, foi encontrada junto ao corpo. O caso está sendo investigado pelo delegado do 2º Distrito Policial.
Jornal a Cidade 04 de Setembro de 2004.



1- Essa noticia de jornal informa-nos sobre um crime. Que detalhes ou informações presentes no texto nos permite comprovar que esse episodio realmente aconteceu? Que informações dadas pelo texto poderiam ser efetivamente pesquisadas para se saber se a noticia é verídica ou não?
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2- Que características da linguagem predomina no texto: conotação ou denotação? Por quê?
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3- O autor do texto revela algum envolvimento emocional com os fatos narrados? Justifique sua resposta.
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Capitães da Areia, de Jorge Amado





Publicado em 1937, o livro retrata a vida de menores abandonados, os "capitães da areia", nome pelo qual eram conhecidos os "meninos de rua" na cidade de Salvador dos anos 30.
Retrata-os os meninos como moleques atrevidos, malandros, espertos, famintos, ladrões, agressivos, falsos, soltos de língua, carentes de afetos, de instrução, de comida.
O livro é dividido em três partes. Antes delas, no entanto, vem uma seqüência de pseudo-reportagens, que caracterizam-nos e mostram diversas visões sobre o caso.


Primeira parte:

Conta algumas histórias quase independentes sobre alguns dos principais Capitães de Areia (o grupo chegava a quase cem, morando num trapiche abandonado, mas tinha líderes).
O ápice da primeira parte vem em dois momentos: quando os meninos se envolvem com um carrossel mambembe que chegou na cidade, e experimentam as sensações infantis; e quando a varíola ataca a cidade e acaba matando um deles, apesar da tentativa do padre José Pedro em ajudá-los, e tendo grandes embaraços por causa disso.


Segunda parte:

Sub-titulada de "Noite da Grande Paz, da Grande Paz dos teus olhos", relata a história de amor que surge quando a menina Dora torna-se a primeira "Capitã da Areia". Apesar de inicialmente os garotos tentarem estuprá-la, ela torna-se qual uma mãe ou irmã para todos.
Ela e Pedro são capturados e muito castigados. Conseguindo fugir, bastante enfraquecidos, amam-se pela primeira vez numa praia, e ela morre - episódio que marca o começo do fim para os principais membros do grupo.


Terceira parte:

Mostra a desintegração dos líderes. Sem-Pernas se mata antes de ser capturado pela polícia que odeia; Professor parte para o Rio de Janeiro onde torna-se um pintor de sucesso, entristecido com a morte de Dora; Gato se torna uma malandro de verdade, abandonando eventualmente sua amante Dalva, e passando por Ilhéus; Pirulito se torna frade; Padre José Pedro finalmente consegue uma paróquia no interior, e vai para lá ajudar os desgarrados do rebanho do Sertão; Volta Seca se torna um cangaceiro do grupo de Lampião e mata mais de 60 soldados antes de ser capturado e condenado; João Grande torna-se marinheiro; Boa-vida continua sua vida de capoeirista e malandro; Pedro Bala, cada vez mais fascinado com as histórias de seu pai sindicalista, vai se envolvendo com os doqueiros e finalmente os Capitães de Areia ajudam numa greve. Pedro Bala abandona a liderança do grupo, mas antes os transforma numa espécie de grupo de choque. Assim Pedro Bala deixa de ser o líder dos Capitães de Areia e se torna um líder revolucionário comunista.


Personagens:

•Pedro Bala, o líder, uma espécie de pai para os garotos, mesmo sendo tão jovem quanto os outros, e depois descobre ser filho de um líder sindical morto durante uma greve;
•Volta Seca, afilhado de Lampião, que tem ódio das autoridades e o desejo de se tornar cangaceiro;
•Professor, que lê e desenha vorazmente, sendo muito talentoso;
•Gato, que com seu jeito malandro acaba conquistando uma prostituta, Dalva;
•Sem-Pernas, o garoto coxo que serve de espião se fingindo de órfão desamparado (e numa das casas que vai é bem acolhido, mas trai a família ainda assim, mesmo sem querer fazê-lo de verdade);
•João Grande, o "negro bom" como diz Pedro Bala, segundo em comando;
•Querido-de-Deus, um capoeirista que é só amigo do grupo;
•Pirulito, tem grande fervor religioso.
•Dora, parecia uma mulherzinha, era muito séria, cuidou de sua mãe quando esta estava doente e depois da morte de sua mãe cuidou de seu irmão, Zé Fuinha; quase foi estuprada pelos meninos Capitães de Areia, mas foi salva por João Grande, Professor e Pedro Bala, que depois percebeu que ela era apenas uma menina; sendo assim, entrou para o grupo dos Capitães de Areia e logo se apaixonou por Pedro Bala; quando os dois foram pegos pela polícia, ela é levada para o orfanato e ele para o reformatório, logo conseguiram fugir e antes de morrer, ela se entregou para Pedro; quando ela morre o grupo começa a se desfazer, cada um vai para um lado;


Análise:

No fundo, o que o SR: Jorge Amado tenta passar, é que cada menino dos Capitães de Areia tenta preencher o vazio de carinho e amor de mãe como pode. Pirulito descobriu Deus para lhe transmitir um pouco desse carinho; Gato descobriu Dalva, uma mulher já feita, muito mais velha que ele, que lhe dava prazer todas as noites; Volta-Seca no seu padrinho, Lampião, que lhe permitia sonhar que um dia se juntaria a ele e juntos lutariam contra o sistema; e assim por diante. Contudo, a realidade é que por mais que eles tentem, esse carinho de mãe não pode ser substituído e que há sempre aquele espaço vazio nos seus corações, o que os leva a continuar a conduzir a vida, na maior parte dos casos, pela criminalidade. Mostra também que o problema desses meninos faz parte da nossa realidade e que não são todas as pessoas que se preocupam com isso, tratando esses meninos como delinqüentes.

Defenestração




Gosto de trabalhar esta crônica para fazer reflexões sobre a linguagem e o vocabulário, refletir sobre as mudanças no Português com o passar do tempo, palavras que caem em desuso e o fato de nem sempre conhecermos todas as palavras do nosso idioma, já que nossa língua portuguesa é muito rica, né?!
Sem contar que textos do Luís Fernando Veríssimo são sempre engraçados e costumam agradar, gerando muitos comentários.

Boa leitura!



Certas palavras têm o significado errado. Falácia, por exemplo, devia ser o nome de alguma coisa vagamente vegetal. As pessoas deveriam criar falácias em todas as suas variedades. A Falácia Amazônica. A
misteriosa Falácia Negra.
-Hermeuta deveria ser o membro de uma seita de andarilhos herméticos. Onde eles chegassem, tudo se complicaria.
-Os hermeutas estão chegando!
-Ih, agora é que ninguém vai entender mais nada...
Os hermeutas ocupariam a cidade e paralisariam todas as atividades produtivas com seu enigmas e frases ambíguas. Ao se retirarem deixariam a população prostrada pela confusão. Levaria semanas até que as coisas
recuperassem o seu sentido óbvio. Antes disso, tudo pareceria ter um sentido oculto.
-Alô...
-O que é que você quer dizer com isso?
Traquinagem devia ser o barulho que um corpo faz ao cair na água.
Mas nenhuma palavra me fascinava tanto quanto defenestração. A princípio foi o fascínio da ignorância. Eu não sabia o seu significado, nunca me lembrava de procurar no dicionário e imaginava coisas. Tinha até um certo tom lúbrico. Galanteadores de calçada deviam sussurrar no ouvido das mulheres:
-Defenestras?
A resposta seria um tapa na cara. Mas algumas... Ah, algumas defenestravam.



Também podia ser algo contra pragas e insetos. As pessoas talvez mandassem defenestrar a casa. Haveria, assim, defenestradores profissionais.
Ou quem sabe seria uma daquelas misteriosas palavras que encerravam os documentos formais? "Nestes termos, pede defenestração..." Era uma palavra cheia de implicações. Devo até tê-la usado uma ou outra vez, como em:
-Aquele é um defenestrado.
Dando a entender que era uma pessoa, assim, como dizer? Defenestrada. Mesmo errada, era a palavra exata.
Um dia, finalmente procurei no dicionário. E aí está o Aurelião que não me deixa mentir. "Defenestração" vem do francês "defenestration". Substantivo feminino. Ato de atirar alguém ou algo pela janela.
Ato de atirar alguém ou algo pela janela!
Acabou a minha ignorância mas não a minha fascinação. Um ato como este só tem nome próprio e lugar nos dicionários por alguma razão muito forte. Afinal, não existe, que eu saiba, nenhuma palavra para o ato de atirar alguém ou algo pela porta, ou escada abaixo. Por que, então, defenestração?
Talvez fosse um hábito francês que caiu em desuso. Como o rapé. Um vício como o tabagismo ou as drogas, suprimindo o tempo.
-Les defenestrations. Devem ser proibidas.
-Sim, monsieur le Ministre.
-São um escândalo nacional. Ainda mais agora, com os novos prédios.
-Sim, monsieur le Ministre.
-Com os prédios de três, quatro andares, ainda era admissível. Até divertido. mas daí para cima vira crime. Todas as janelas do quarto andar para cima devem ter um cartaz: "Interdit de defenestrer". Os transgressores serão mutados. Os reincidentes serão presos.
Na bastilha, o Marquês de Sade deve ter convivido com notórios defenestreus. E a compulsão, mesmo suprimida, talvez ainda persista no homem, como persiste na sua linguagem. O mundo pode estar cheio de defenestradores latentes.
-É esta estranha vontade de atirar alguém ou algo pela janela, doutor...
-Hmm. O impulsus defenestrex de que nos fala Freud. Algo a ver com a mãe. Nada com o que se preocupar - diz o analista, afastando-se da janela.
Quem entre nós nunca sentiu a compulsão de atirar alguém ou algo pela janela? A basculante foi inventada para desencorajar a defenestração. Toda a arquitetura moderna, com suas paredes externas de vidro reforçado e sem aberturas, pode ser uma reação inconsciente e esta volúpia humana, nunca totalmente dominada.
Na lua-de-mel, numa suíte matrimonial do 17º andar.
-Querida...
-Mmmm?
-Há uma coisa que eu preciso lhe dizer...
-Fala, amor.
-Sou um defenestrador.
E a noiva, na sua inocência, caminha para a cama:
-Estou pronta para experimentar tudo com você. Tudo!
Uma multidão cerca o homem que acaba de cair na calçada. Entre gemidos, ele aponta para cima e balbucia:
-Fui defenestrado...
Alguém comenta:
-Coitado. E depois ainda atiraram ele pela janela!
Agora mesmo me deu uma estranha compulsão de arrancar o papel da máquina e defenestrar esta crônica. Se ela sair é porque resisti.


Luís Fernando Veríssimo

segunda-feira, 1 de março de 2010

Entrevista com Roberto Drummond

Eu acho interessantíssimo ler entrevistas de escritores, pois posso ter acesso ao que se passa na cabeça do artista e entender um pouco deste ambiente literário, né?!

Segue uma entrevista de Roberto Drummond, que ficou conhecido por causa da série Hilda Furacão, da rede Globo.






Roberto Drummond: "Eu quero a ambigüidade"

Escritor fala de jornalismo, literatura, realidade, ficção e da sua vontade de ser Papa

Por André Azevedo, estudante de Jornalismo

Revelação: A literatura fala da alma humana e o jornalismo cobre a prática humana. Será que o jornalismo deve investigar a essência do homem, ou esse papel é só da literatura?

Roberto Drummond: O Jornalismo vive sempre momentos fugazes. Por ser um jornalismo diário, de jornal, televisão ou rádio, está de acordo com o que está acontecendo naquele dia, na véspera. Ele é perecível, mais perecível que uma maçã. Muitas vezes vem dentro do jornal gêneros que são vizinhos da literatura, como a crônica. E há casos históricos. O Hemingway cobrindo a guerra civil da Espanha escreveu um texto para um jornal americano sobre um velho na ponte que depois colocou num livro como um conto. Na verdade é um conto e dura até hoje porque ele escreveu como um escritor escreveria.

Revelação: Qual é a relação do jornalismo na sua obra literária?

Drummond: O jornalismo é sempre um auxiliar. Eu diria que é um trabalhador escravo da literatura quando o escritor é também jornalista.

Revelação: Será que o copidesque [técnica de edição que corta o que considera excessos no texto jornalístico] mata a vida no jornalismo?

Drummond: Olha, eu fui da geração copidesque no Binômio, depois na Última Hora mineira, na revista Alterosa e depois na própria "bíblia", que era o Jornal do Brasil. Então eu fui o copidesque do Jornal do Brasil e você não imagina o meu status. Depois o Nelson Rodrigues investiu contra o copidesque – com toda a razão – fez várias críticas contra isso.
O Hilda Furacão foi escrito como um anti-copidesque, porque se eu fizesse um livro à copidesque ele não alcançaria o que eu queria e nem o sucesso que alcançou. Agora, já O cheiro de deus, eu escrevi como quem foi copidesque muito tempo porque eu precisava do texto seco, quase no osso da frase.

Revelação: Como Hemingway?

Drummond: Não, não é Hemingway porque a frase é circular. Eu precisava daquela coisa do redemoinho, em plena ação. Precisava de uma coisa magra como um redemoinho. Aquele texto nervoso, tenso, do copidesque do Jornal do Brasil me ajudou muito.

Revelação: O lead [primeiro parágrafo da notícia onde se coloca a informação principal] foi uma revolução que sua geração fez em relação ao nariz-de-cera [introdução repleta de rodeios e adjetivos]. Entretanto, hoje o lead é muito contestado, pois acredita-se que a realidade não cabe dentro daquela forma do quem-que-quando-onde-como-porque. O que acha disso?

Drummond: Eu aprendi uma coisa: não tem verdade absoluta nenhuma. Tem hora que você pode usar o lead. Tem hora que você não deve. E acho hoje que aquela revolução foi muito radical, como toda revolução. O chamado nariz-de-cera às vezes era sábio. Até hoje, conforme o texto, você pode fazer um nariz-de-cera misturado com aquele jornalismo mais enxuto.
Se você vai contar uma história policial "boa", você tem que criar suspense. E para criar suspense você não pode fazer lead e sublead. O Garcia Marquez tem vários livros assim – pois além de um grande escritor é um grande jornalista e um grande repórter – em que ele faz exatamente isso. Tem um sequestro na Colômbia em que ele vai descrevendo pormenorizadamente o dia-a-dia de um personagem até que aconteça o crime.
Como Truman Capote fez em A sangue frio. Um crime que teve repercussão enorme, ele foi descrevendo aquilo lentamente, enxutamente, criando um suspense danado. No fim do primeiro capítulo, mesmo conhecendo o crime, você está doido para ler.
Se você for descrever os grandes crimes, se você for contar uma história sobre o Louco do Triângulo, que é...

Revelação: Louco do Triângulo?

Drummond: É um personagem famosérrimo. Você não conhece ele não?
Revelação: Não. O que ele fez?

Drummond: Louco do Triângulo era um "louco do Triângulo Mineiro". O único escritor que fez referência a ele fui eu. Ele não foi ainda personagem de livro nenhum. Era um louco que ficava assustando muita gente, apavorando o Triângulo. O Governador era o Francelino [Pereira] ou o Rondom Pacheco. E então a Polícia Militar veio prendê-lo. Fez o cerco ao Louco do Triângulo. E ele já tinha virado lenda. E não o prendiam, e o Estado de Minas falando, o Diário da Tarde também, todos em pânico com o Louco do Triângulo. Aí o governador convocou o chefe da Polícia Militar, e ele explicou que não podia prender o Louco do Triângulo porque: Governador, na hora que a gente dá voz de prisão ele vira um passarinho. A gente põe numa gaiola ele vira uma onça pintada. Na hora que a gente prepara para dar aquele tiro para fazer a onça dormir ele vira um charuto. E é um perigo, governador, a gente pegar aquele charuto: e se ele virar um tigre na mão da gente?
Isso foi dito para o governador e saiu nos jornais. Então, se você for contar a história do Louco do Triângulo assim: era um louco que fez isso, isso, isso... não dá! Você tem que começar lentamente... descrevendo tudo...

Revelação: A realidade é mais o que percebemos ou mais o que imaginamos?

Drummond: Eu acho que a realidade, no Brasil, é uma ficção. Em qualquer país, também é, mas no Brasil a gente conhece. O Brasil é uma ficção. Minas Gerais foi escrita por Deus, Diabo, Shakespeare, Tolstoi e por aí. Para você ver, aqui mesmo
em Uberaba o Chico Xavier recebe, do além, textos do Machado de Assis e Dostoievski já traduzido para o português. E é verdade! Você compara o texto. E ele conversa com o além, dá recado, essa coisa toda. E você vai contestar? Vai contestar o Louco do Triângulo, o Zé Arigó que recebia o espírito do Dr. Fritz? Os lobisomens, as mulas-sem-cabeça, essas coisas todas?

Revelação: Parece que essa realidade mágica está muito ligada à percepção de mundo que todos tivemos na infância. Percebi que todo personagem seu, quando sente uma emoção muito forte, normalmente se infantiliza. Será que com esse mundo de fadas, Papai Noel e Bicho-papão, o encantamento da infância é o paraíso mágico que perdemos e buscamos a vida toda?

Drummond: Eu gosto muito dessa sua leitura do problema da infantilização. Eu acho que o homem feliz e a mulher feliz viram crianças. Têm um comportamento de infantilismo. Isso ninguém tinha dito sobre minha obra. Já disseram tudo, tem tese de mestrado, tem coisa inclusive fora do Brasil, mas isso ninguém viu.
Eu acho até que tenho um problema. Quando viajo eu estou alimentarmente infantilizado. Tenho que tomar cuidado senão desando a comer chocolate, tudo que me proíbo eu faço (risos). E quando vou ao Mineirão ver jogo – e eu tenho que escrever sobre jogos – eu acabo chupando picolé, comendo chocolate, uma série de coisas. Agora, nisso aí é uma verdade. O personagem é infantilizado e liberto. É a infantilização como liber-tação.

Revelação: Freud explica?

Drummond: Olha, o Freud tem uma análise antológica – como tudo dele – sobre o problema da infantilização que vários psicanalistas retomaram. Um deles é que a pessoa infantiliza como uma proteção, para se fortalecer para enfrentar as coisas pela frente.

Revelação: Como a Dôia? [personagem de um conto em A morte de D.J. em Paris]

Drummond: Ali ela nem infantilizava, ela tem um surto mesmo. Ali eu fui derrotado em uma entrevista, certa vez. Porque a minha análise era política: ela viu um Cristo sendo crucificado. Ninguém aceitou. Ainda bem. Mas tem isso, a infantilização libertadora e protetora, como em Freud.

Revelação: E sobre a infantilização como forma de reencantamento do mundo, sua obra tem mesmo essa visão?

Drummond: Talvez, talvez... aí é uma leitura sua que é melhor do que a minha.

Revelação: Será que a realidade é apenas um alicerce para os nossos sonhos?

Drummond: O diabo é que o sonho da gente é um sonho perdido. O presidente da República, a política econômica... Meu próximo livro chama-se Os mortos não dançam valsa. É um livro existencialista, mas sobre as coisas simples que a gente não faz, sonhos e quimeras pequenininhos que a gente não faz, porque a gente não tem condições de fazer ou porque a gente depende de um punhado de coisas.

Revelação: As me-lhores lembranças da vida são os sonhos e ilusões?

Drummond: Ah, isso não. As melhores lembranças da vida são rea-lidade e eu trato disso no Cheiro de Deus. Só que passam rápido. É um cavalo bravo, é um beija-flor que chega à felicidade.

Revelação: Mas não seriam os sonhos despertados nesses pequenos momentos que os fazem grandes?

Drummond: Não. Eu acho que sonho é sonho e realidade é realidade. Às vezes a realidade parece um sonho porque é quando você realiza "aquele momento", o momento que o jogador faz o gol, de um ator interpretando bem, de um escritor escrevendo bem e um homem amando uma mulher e vice-versa. A realidade é muito melhor que a ficção.

Revelação: O escritor reúne fragmentos da realidade, reconstrói os trechos em outra sequência e faz literatura. A vivência dessa reconstrução através da leitura vale como se fosse uma experiência da própria realidade, ou é outra coisa?
Drummond: Cumé que é?

Revelação: Quando a gente lê um livro e passa-se alguns anos, a memória que fica é tão verdadeira quanto as memórias das coisas vividas?

Drummond: O Mario Vargas Llosa, que é um grande escritor peruano, disse que sofreu mais com a morte da Madame Bovary [personagem de Gustave Flaubert] que de muita gente. Tem livro que você lê e que não esquece nunca. Eu te confesso que na minha experiência eu sofri mais com as frases do que com as mulheres. (risos) Consegui mais o sim das mulheres do que de muitas frases. Tem frases que ainda não consegui o "sim" delas.

Revelação: Nós vive-mos, então, numa espécie de limbo entre realidade e ficção?

Drummond: Eu acho o seguinte: por exemplo, eu estou aqui em Uberaba e eu morei em Araxá na década de 50. Então eu vi a região do Triângulo do avião e começei a voltar no tempo... foi um momento feliz, meu pai vivo, minha mãe viva, todo mundo vivo... então eu estou aqui mas lembrando de coisas de lá; daqui a pouco estou vendo a casa onde morava... estou vendo a minha irmã, estou vendo uma chuva que caiu no dia-a-dia e que virou foto... Isso é a realidade. E o Joyce, o Faulkner e a Virginia Wolf trabalharam isso muito bem com ajuda do que o Freud estava fazendo, que é a corrente da consciência. A gente está aqui, mas ao mesmo tempo a gente não está aqui. O Marcelo está ali agora com a mão sobre a mesa mas não sei aonde ele está. Aqui, acho que não. (risos) E isso é maravilhoso.
Minha vida está ótima, tudo até além do que estava planejando como escritor. Cada vez mais, porque é no mundo e não só no Brasil. E no entanto eu gostaria hoje, se eu pudesse fazer uma ilha da fantasia, de voltar para Araxá naquele dia que caiu a chuva.

Revelação: Quando você queria ser Papa?

Drummond: É, eu queria ser Papa mas ao mesmo tempo estava com um problema muito sério. Aí que Dostoievski fala que toda vida dá um livro. Mas nesse tempo eu brincava de médico com uma vizinha linda – não vai colocar o nome dela, hein?! A família dela está toda em Araxá! – e eu ficava naquele conflito, e dava injeção de água nela, era maravilhoso, arrepiante até hoje.

Revelação: E quando desistiu de ser o pontífice?

Drummond: Depois eu rompi com Deus, com a religião, e isso é muito cômico porque eu estava devendo tanta missa às almas, (risos) tantos terços e tantas promessas que tinha que cumprir, pois eu era um pecador e o padre da minha terra é aquele que está no Hilda Furacão, o Padre Nelson. Então eu fui ficando endividado, porque como pagar cinco terços por cada pecado mortal que eu cometia? Para o padre Nelson qualquer coisa era pecado. Ele proibia carnaval, proibia festas, alegria, rir – proibiu a dona Nevita de rir – proibiu o decote "bolero" das meninas...

Revelação: (lendo um trecho do livro) Você ainda acha que o diabo só faz o que Deus permite?

Drummond: Isso tá onde?

Revelação: Num diálogo do Hilda Furacão. (pág. 136)

Drummond: Tá no livro é? Quem tá falando isso?

Revelação: (mos-trando o trecho para Drummond) É um diá-logo entre o você frei Malthus. Foi você quem disse.

Drummond: É... é a opinião desse que está aí no livro... (risos) que sou eu... mas não quer dizer que seja minha... (risos gerais)

Revelação: Quem não conhece sua história pessoal e lê Hilda Furacão sente-se confuso porque não sabe quais trechos são reais e quais são fictícios. Era isso quevocê queria?

Drummond: Não. Eu queria que todo mundo acreditasse em tudo, como se fosse verdade, que é o propósito de todo escritor. O jornalista não tem isso porque ele quer a certeza do que está contado. Eu quero a dúvida. Eu quero a ambigüidade, aquela coisa que é e que não é.

Revelação: Legal isso. Dá um lead.

Drummond: É, dá um lead.

Revelação: Não! Dá um título!

Drummond: É mesmo.

Negrinha, Monteiro Lobato

Negrinha era uma pobre órfã de sete anos. Preta? Não; fusca, mulatinha escura, de cabelos ruços e olhos assustados.
Nascera na senzala, de mãe escrava, e seus primeiros anos vivera-os pelos cantos escuros da cozinha, sobre velha esteira e trapos imundos. Sempre escondida, que a patroa não gostava de crianças.
Excelente senhora, a patroa. Gorda, rica, dona do mundo, amimada dos padres, com lugar certo na igreja e camarote de luxo reservado no céu. Entaladas as banhas no trono (uma cadeira de balanço na sala de jantar), ali bordava, recebia as amigas e o vigário, dando audiências, discutindo o tempo. Uma virtuosa senhora em suma — “dama de grandes virtudes apostólicas, esteio da religião e da moral”, dizia o reverendo.
Ótima, a dona Inácia.



Mas não admitia choro de criança. Ai! Punha-lhe os nervos em carne viva. Viúva sem filhos, não a calejara o choro da carne de sua carne, e por isso não suportava o choro da carne alheia. Assim, mal vagia, longe, na cozinha, a triste criança, gritava logo nervosa:
— Quem é a peste que está chorando aí?
Quem havia de ser? A pia de lavar pratos? O pilão? O forno? A mãe da criminosa abafava a boquinha da filha e afastava-se com ela para os fundos do quintal, torcendo-lhe em caminho beliscões de desespero.
— Cale a boca, diabo!
No entanto, aquele choro nunca vinha sem razão. Fome quase sempre, ou frio, desses que entanguem pés e mãos e fazem-nos doer...
Assim cresceu Negrinha — magra, atrofiada, com os olhos eternamente assustados. Órfã aos quatro anos, por ali ficou feito gato sem dono, levada a pontapés. Não compreendia a idéia dos grandes. Batiam-lhe sempre, por ação ou omissão. A mesma coisa, o mesmo ato, a mesma palavra provocava ora risadas, ora castigos. Aprendeu a andar, mas quase não andava. Com pretextos de que às soltas reinaria no quintal, estragando as plantas, a boa senhora punha-a na sala, ao pé de si, num desvão da porta.
— Sentadinha aí, e bico, hein?
Negrinha imobilizava-se no canto, horas e horas.
— Braços cruzados, já, diabo!
Cruzava os bracinhos a tremer, sempre com o susto nos olhos. E o tempo corria. E o relógio batia uma, duas, três, quatro, cinco horas — um cuco tão engraçadinho! Era seu divertimento vê-lo abrir a janela e cantar as horas com a bocarra vermelha, arrufando as asas. Sorria-se então por dentro, feliz um instante.
Puseram-na depois a fazer crochê, e as horas se lhe iam a espichar trancinhas sem fim.
Que idéia faria de si essa criança que nunca ouvira uma palavra de carinho? Pestinha, diabo, coruja, barata descascada, bruxa, pata-choca, pinto gorado, mosca-morta, sujeira, bisca, trapo, cachorrinha, coisa-ruim, lixo — não tinha conta o número de apelidos com que a mimoseavam. Tempo houve em que foi a bubônica. A epidemia andava na berra, como a grande novidade, e Negrinha viu-se logo apelidada assim — por sinal que achou linda a palavra. Perceberam-no e suprimiram-na da lista. Estava escrito que não teria um gostinho só na vida — nem esse de personalizar a peste...
O corpo de Negrinha era tatuado de sinais, cicatrizes, vergões. Batiam nele os da casa todos os dias, houvesse ou não houvesse motivo. Sua pobre carne exercia para os cascudos, cocres e beliscões a mesma atração que o ímã exerce para o aço. Mãos em cujos nós de dedos comichasse um cocre, era mão que se descarregaria dos fluidos em sua cabeça. De passagem. Coisa de rir e ver a careta...
A excelente dona Inácia era mestra na arte de judiar de crianças. Vinha da escravidão, fora senhora de escravos — e daquelas ferozes, amigas de ouvir cantar o bolo e estalar o bacalhau. Nunca se afizera ao regime novo — essa indecência de negro igual a branco e qualquer coisinha: a polícia! “Qualquer coisinha”: uma mucama assada ao forno porque se engraçou dela o senhor; uma novena de relho porque disse: “Como é ruim, a sinhá!”...
O 13 de Maio tirou-lhe das mãos o azorrague, mas não lhe tirou da alma a gana. Conservava Negrinha em casa como remédio para os frenesis. Inocente derivativo:
— Ai! Como alivia a gente uma boa roda de cocres bem fincados!...
Tinha de contentar-se com isso, judiaria miúda, os níqueis da crueldade. Cocres: mão fechada com raiva e nós de dedos que cantam no coco do paciente. Puxões de orelha: o torcido, de despegar a concha (bom! bom! bom! gostoso de dar) e o a duas mãos, o sacudido. A gama inteira dos beliscões: do miudinho, com a ponta da unha, à torcida do umbigo, equivalente ao puxão de orelha. A esfregadela: roda de tapas, cascudos, pontapés e safanões a uma — divertidíssimo! A vara de marmelo, flexível, cortante: para “doer fino” nada melhor!
Era pouco, mas antes isso do que nada. Lá de quando em quando vinha um castigo maior para desobstruir o fígado e matar as saudades do bom tempo. Foi assim com aquela história do ovo quente.
Não sabem! Ora! Uma criada nova furtara do prato de Negrinha — coisa de rir — um pedacinho de carne que ela vinha guardando para o fim. A criança não sofreou a revolta — atirou-lhe um dos nomes com que a mimoseavam todos os dias.
— “Peste?” Espere aí! Você vai ver quem é peste — e foi contar o caso à patroa.
Dona Inácia estava azeda, necessitadíssima de derivativos. Sua cara iluminou-se.
— Eu curo ela! — disse, e desentalando do trono as banhas foi para a cozinha, qual perua choca, a rufar as saias.
— Traga um ovo.
Veio o ovo. Dona Inácia mesmo pô-lo na água a ferver; e de mãos à cinta, gozando-se na prelibação da tortura, ficou de pé uns minutos, à espera. Seus olhos contentes envolviam a mísera criança que, encolhidinha a um canto, aguardava trêmula alguma coisa de nunca visto. Quando o ovo chegou a ponto, a boa senhora chamou:
— Venha cá!
Negrinha aproximou-se.
— Abra a boca!
Negrinha abriu aboca, como o cuco, e fechou os olhos. A patroa, então, com uma colher, tirou da água “pulando” o ovo e zás! na boca da pequena. E antes que o urro de dor saísse, suas mãos amordaçaram-na até que o ovo arrefecesse. Negrinha urrou surdamente, pelo nariz. Esperneou. Mas só. Nem os vizinhos chegaram a perceber aquilo. Depois:
— Diga nomes feios aos mais velhos outra vez, ouviu, peste?
E a virtuosa dama voltou contente da vida para o trono, a fim de receber o vigário que chegava.
— Ah, monsenhor! Não se pode ser boa nesta vida... Estou criando aquela pobre órfã, filha da Cesária — mas que trabalheira me dá!
— A caridade é a mais bela das virtudes cristas, minha senhora —murmurou o padre.
— Sim, mas cansa...
— Quem dá aos pobres empresta a Deus.
A boa senhora suspirou resignadamente.
— Inda é o que vale...
Certo dezembro vieram passar as férias com Santa Inácia duas sobrinhas suas, pequenotas, lindas meninas louras, ricas, nascidas e criadas em ninho de plumas.
Do seu canto na sala do trono, Negrinha viu-as irromperem pela casa como dois anjos do céu — alegres, pulando e rindo com a vivacidade de cachorrinhos novos. Negrinha olhou imediatamente para a senhora, certa de vê-la armada para desferir contra os anjos invasores o raio dum castigo tremendo.
Mas abriu a boca: a sinhá ria-se também... Quê? Pois não era crime brincar? Estaria tudo mudado — e findo o seu inferno — e aberto o céu? No enlevo da doce ilusão, Negrinha levantou-se e veio para a festa infantil, fascinada pela alegria dos anjos.
Mas a dura lição da desigualdade humana lhe chicoteou a alma. Beliscão no umbigo, e nos ouvidos, o som cruel de todos os dias: “Já para o seu lugar, pestinha! Não se enxerga”?
Com lágrimas dolorosas, menos de dor física que de angústia moral —sofrimento novo que se vinha acrescer aos já conhecidos — a triste criança encorujou-se no cantinho de sempre.
— Quem é, titia? — perguntou uma das meninas, curiosa.
— Quem há de ser? — disse a tia, num suspiro de vítima. — Uma caridade minha. Não me corrijo, vivo criando essas pobres de Deus... Uma órfã. Mas brinquem, filhinhas, a casa é grande, brinquem por aí afora.
— Brinquem! Brincar! Como seria bom brincar! — refletiu com suas lágrimas, no canto, a dolorosa martirzinha, que até ali só brincara em imaginação com o cuco.
Chegaram as malas e logo:
— Meus brinquedos! — reclamaram as duas meninas.
Uma criada abriu-as e tirou os brinquedos.
Que maravilha! Um cavalo de pau!... Negrinha arregalava os olhos. Nunca imaginara coisa assim tão galante. Um cavalinho! E mais... Que é aquilo? Uma criancinha de cabelos amarelos... que falava “mamã”... que dormia...
Era de êxtase o olhar de Negrinha. Nunca vira uma boneca e nem sequer sabia o nome desse brinquedo. Mas compreendeu que era uma criança artificial.
— É feita?... — perguntou, extasiada.
E dominada pelo enlevo, num momento em que a senhora saiu da sala a providenciar sobre a arrumação das meninas, Negrinha esqueceu o beliscão,o ovo quente, tudo, e aproximou-se da criatura de louça. Olhou-a com assombrado encanto, sem jeito, sem ânimo de pegá-la.
As meninas admiraram-se daquilo.
— Nunca viu boneca?
— Boneca? — repetiu Negrinha. — Chama-se Boneca?
Riram-se as fidalgas de tanta ingenuidade.
— Como é boba! — disseram. — E você como se chama?
— Negrinha.
As meninas novamente torceram-se de riso; mas vendo que o êxtase da bobinha perdurava, disseram, apresentando-lhe a boneca:
— Pegue!
Negrinha olhou para os lados, ressabiada, como coração aos pinotes. Que ventura, santo Deus! Seria possível? Depois pegou a boneca. E muito sem jeito, como quem pega o Senhor menino, sorria para ela e para as meninas, com assustados relanços de olhos para a porta. Fora de si, literalmente... era como se penetrara no céu e os anjos a rodeassem, e um filhinho de anjo lhe tivesse vindo adormecer ao colo. Tamanho foi o seu enlevo que não viu chegar a patroa, já de volta. Dona Inácia entreparou, feroz, e esteve uns instantes assim, apreciando a cena.
Mas era tal a alegria das hóspedes ante a surpresa extática de Negrinha, e tão grande a força irradiante da felicidade desta, que o seu duro coração afinal bambeou. E pela primeira vez na vida foi mulher. Apiedou-se.
Ao percebê-la na sala Negrinha havia tremido, passando-lhe num relance pela cabeça a imagem do ovo quente e hipóteses de castigos ainda piores. E incoercíveis lágrimas de pavor assomaram-lhe aos olhos.



Falhou tudo isso, porém. O que sobreveio foi a coisa mais inesperada do mundo — estas palavras, as primeiras que ela ouviu, doces, na vida:
— Vão todas brincar no jardim, e vá você também, mas veja lá, hein?
Negrinha ergueu os olhos para a patroa, olhos ainda de susto e terror. Mas não viu mais a fera antiga. Compreendeu vagamente e sorriu.
Se alguma vez a gratidão sorriu na vida, foi naquela surrada carinha...
Varia a pele, a condição, mas a alma da criança é a mesma — na princesinha e na mendiga. E para ambos é a boneca o supremo enlevo. Dá a natureza dois momentos divinos à vida da mulher: o momento da boneca — preparatório —, e o momento dos filhos — definitivo. Depois disso, está extinta a mulher.
Negrinha, coisa humana, percebeu nesse dia da boneca que tinha uma alma. Divina eclosão! Surpresa maravilhosa do mundo que trazia em si e que desabrochava, afinal, como fulgurante flor de luz. Sentiu-se elevada à altura de ente humano. Cessara de ser coisa — e doravante ser-lhe-ia impossível viver a vida de coisa. Se não era coisa! Se sentia! Se vibrava!
Assim foi — e essa consciência a matou.
Terminadas as férias, partiram as meninas levando consigo a boneca, e a casa voltou ao ramerrão habitual. Só não voltou a si Negrinha. Sentia-se outra, inteiramente transformada.
Dona Inácia, pensativa, já a não atazanava tanto, e na cozinha uma criada nova, boa de coração, amenizava-lhe a vida.
Negrinha, não obstante, caíra numa tristeza infinita. Mal comia e perdera a expressão de susto que tinha nos olhos. Trazia-os agora nostálgicos, cismarentos.
Aquele dezembro de férias, luminosa rajada de céu trevas adentro do seu doloroso inferno, envenenara-a.
Brincara ao sol, no jardim. Brincara!... Acalentara, dias seguidos, a linda boneca loura, tão boa, tão quieta, a dizer mamã, a cerrar os olhos para dormir. Vivera realizando sonhos da imaginação. Desabrochara-se de alma.
Morreu na esteirinha rota, abandonada de todos, como um gato sem dono. Jamais, entretanto, ninguém morreu com maior beleza. O delírio rodeou-a de bonecas, todas louras, de olhos azuis. E de anjos... E bonecas e anjos remoinhavam-lhe em torno, numa farândola do céu. Sentia-se agarrada por aquelas mãozinhas de louça — abraçada, rodopiada.
Veio a tontura; uma névoa envolveu tudo. E tudo regirou em seguida, confusamente, num disco. Ressoaram vozes apagadas, longe, e pela última vez o cuco lhe apareceu de boca aberta.
Mas, imóvel, sem rufar as asas.
Foi-se apagando. O vermelho da goela desmaiou...
E tudo se esvaiu em trevas.
Depois, vala comum. A terra papou com indiferença aquela carnezinha de terceira — uma miséria, trinta quilos mal pesados...
E de Negrinha ficaram no mundo apenas duas impressões. Uma cômica, na memória das meninas ricas.
— “Lembras-te daquela bobinha da titia, que nunca vira boneca?”
Outra de saudade, no nó dos dedos de dona Inácia.
— “Como era boa para um cocre!...”

Sobre Monteiro Lobato:

Monteiro Lobato, natural de Taubaté (SP), nasceu em 18/04/1882. É uma das figuras excepcionais das letras brasileiras. Jornalista, contista, criador de deliciosas histórias para crianças, suscitador de problemas, ensaísta e homem de ação, encheu com seu nome um largo período da vida nacional. Com a publicação do livro de contos "Urupês", em julho de 1918, quando já contava com 36 anos de idade, chama para o seu talento de escritor a atenção de todo o país. Cita-o Ruy Barbosa, em discurso, encontrando no seu Jeca Tatu um símbolo da realidade rural brasileira. Lança-se à indústria editorial, publica livros e mais livros — "Onda Verde", "Idéias de Jeca Tatu", "Cidades Mortas", "Negrinha", "Fábulas", "O Choque", etc. Fracassa como editor, ao lançar a firma Monteiro Lobato & Cia., mas volta com a Companhia Editora Nacional, ao lado de Octales Marcondes, e triunfa. Tenta a exploração de petróleo, e acaba na cadeia, perseguido pela ditadura de Getúlio Vargas. Não só escreve, como traduz sem pausa, dezenas e dezenas de livros, especialmente de Kipling. Uma vida cheia. E uma grande obra, que lhe preservará o nome glorioso. Foi um grande homem, um grande brasileiro e um dos maiores escritores — em todo o mundo — de histórias para crianças. Basta dizer que, no período de 1925 a 1950 foram vendidos aproximadamente um milhão e quinhentos mil exemplares de seus livros.
Era, de fato, um ser plural: escritor precursor do realismo fantástico, escritor de cartas, escritor de obras infantis, ensaísta, crítico de arte e literatura, pintor, jornalista, empresário, fazendeiro, advogado, sociólogo, tradutor, diplomata, etc. Faleceu na cidade de São Paulo (SP), no dia 04 de julho de 1948.


O texto acima foi publicado originalmente em livro do mesmo nome, tendo sido selecionado por Ítalo Moriconi e consta de "Os cem melhores contos brasileiros do século", editora Objetiva — Rio de Janeiro, 2000, pág. 78.

Sugestão de Leitura

Não sei se alguns sabem, mas eu tenho um blog onde faço reflexões pessoais. Esses dias postei lá uma resenha do seguinte livro:




Interessados, favor clicar no link: http://anagabigabriela.blogspot.com/2010/02/eu-prisioneira-das-farc.html

Proposta de narração

Faça uma redação objetiva, com narrador em 3ª pessoa, contando um incidente ocorrido no pronto-socorro de um imenso hospital.
Utilize discurso direto.
Crie um título adequado.

OBS.: Seu texto deve ter de 15 a 20 linhas e ser entregue a tinta azul ou preta.